Contratos Administrativos: Reequilíbrio Econômico-Financeiro e COVID-19.
Em caso de haver prejuízo à contratada em contrato administrativo decorrente de fato relacionado ao COVID-19, a Administração deve restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro contratual, indenizando a contratada.
Vinicius da Silva Oliveira[1]
“Alea iacta est”. Foi com esta frase que Júlio César rogou sorte a si quando atravessou o rio Rubicão, ato que culminou na guerra civil contra Pompeu e os optimates, da qual saiu aquele vitorioso. O dado foi lançado, e, para sua sorte, virou-se ao Imperador a face da vitória.
Etimologicamente, o termo alea tem origem no latim, significando, denotativamente, “dado”, e, conotativamente, sorte, acaso, randomicidade, aleatoriedade. No âmbito jurídico pátrio, o termo “álea”, parido do Direito Romano, é deveras recorrente na teoria dos contratos, significando situação contratual em que a reciprocidade das obrigações onerosas e sinalagmáticas é frágil ou inexistente, podendo vir a ser quebrantada por caso fortuito ou evento de força maior.[2]
Assim, um contrato será aleatório quando ao menos uma das partes assume o risco de adimplir sua obrigação mesmo que haja risco de que a contraprestação obrigacional não seja equitativa ou existente, devido a acontecimento incerto e futuro, como é o caso do contrato de seguro; e, ao revés, será comutativo quando as partes contratantes, em sua declaração de vontade, delimitam direitos e deveres recíprocos, previsíveis e certos, como é o caso da compra e venda.[3]
Os contratos administrativos, por estarem sempre necessariamente banhados pelos princípios da legalidade, da publicidade e da vinculação ao instrumento público convocatório, entre outros, têm, naturalmente, cariz oneroso, sinalagmático e comutativo, sendo, pois, razoavelmente equânimes e certas as obrigações recíprocas firmadas entre a Administração e a contratada, nos termos do artigo 2º, parágrafo único, da Lei 8.666/1993.[4]
Tanto assim o é que, quando da licitação, o termo de referência ou o projeto básico vincula a Administração à contratada, e, da mesma forma, a proposta vincula a contratada à Administração; e, perpassando-se essas fases, vê-se no contrato administrativo firmado entre elas a perfeita materialização das bilateralidade e comutatividade contratuais[5], consubstanciadas nos direitos e deveres que cada contraente tem uma para com a outra, com vistas a manter o equilíbrio econômico-financeiro contratual, conforme, por exemplo, as disposições dos artigos 77 a 80 da Lei Federal nº 8.666/1993, para ficar só nela.
No plano jurídico abstrato, portanto, não há que se hesitar: se o contrato sujeita prestação ou prestações a risco anormal, futuro e incerto, é ele aleatório; se, ao contrário, o contrato firma obrigações recíprocas, certas e previsíveis aos contraentes – inclusive em relação à previsibilidade dos riscos normais do negócio –, é ele comutativo. Mas o plano dos fatos não costuma corroborar estritamente o plano jurídico das ideias; a disposição tipicamente a priori do texto legal não é capaz de prever a vicissitude inerente aos casos da vida.
Que fazer, então, se, durante a execução de um contrato comutativo, sua ínsita comutatividade desvanecer-se em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis ou inevitáveis, tornando a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra?
É com o uso da teoria da imprevisão que esse impasse é diluído.
A teoria da imprevisão está expressa na Seção IV do Capítulo II do Título V do Livro I da Parte Especial do Código Civil de 2002, denominada Da Resolução [Contratual] por Onerosidade Excessiva, continente dos artigos4788,4799 e4800 do édito. Essa teoria concebe, em interpretação sistemática com o artigo 393, que, nesses casos de onerosidade excessiva, o contraente prejudicado poderá pedir a resolução do contrato; pedir que sua prestação seja reduzida na medida do desequilíbrio; ou, como terceira solução, poderá o contraente beneficiado modificar equitativamente as condições do contrato, restabelecendo a comutatividade contratual.
A teoria, entretanto, está espraiada pelo ordenamento, e, no âmbito dos contratos administrativos, ganha contornos e balizas, estabelecidos pelas normas cogentes típicas do Direito Público, sobretudo pelo inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal e pelos artigos 54 e 65, II, d, da Lei Federal nº 8.666/1993. Diante dessa roupagem, de mesma essência, passa-se a falar no reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, por sua revisão, visando à comutativa realocação dos riscos contratuais.
Materializa-se por meio desses dispositivos exceção à corriqueira comutatividade dos contratos administrativos, que, como regra, respeitam o basilar princípio de que pacta sunt servanda[6] nos exatos termos em que foram avençados. Assim não o sendo, tem-se presente uma exceção, que se justifica na existência de álea econômica, a qual quebra decerto o almejado estado de subsistência das coisas[7] atinentes às recíprocas obrigações contratuais.
É certo dizer, então, que a álea econômica é extraordinária e excedente aos mitigados e normais riscos inerentes ao contrato administrativo – assumidos quando da aceitação da proposta por parte da Administração –, advindo de instabilidade econômica, social, sanitária – consequente de caso fortuito ou de força maior – que acarrete estado de imprevisão, quer pelos impactos de seus efeitos, quer pela imprevisibilidade de suas consequências, e nunca dependente da parte.[8]
Mas, afinal, a pandemia decorrente do COVID-19 pode ser entendida como evento que enseja a aplicabilidade da teoria da imprevisão, sobretudo no que toca à revisão do contrato administrativo celebrado anteriormente, e vigente durante seus efeitos, para restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro?
A resposta, evidentemente, é afirmativa.
É que as consequências jurídicas desta pandemia nos contratos administrativos são dela diretamente paridas. Ocorre, no caso, justamente a situação tutelada pelo inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, que obriga à manutenção das condições efetivas da proposta (ou seja, as condições do momento em que foi apresentada, antes da COVID-19). É, também, a situação tutelada pela necessidade de a Administração proceder à “justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento”, devendo ela restabelecer os encargos e retribuição que restaram inicialmente pactuados quando “sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”, nos termos do artigo 65, II, d, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Ademais, com vista no artigo 54 da Lei Federal nº 8.666/1933, que aplica subsidiariamente aos contratos administrativos as disposições do direito privado, e conquanto não haja consenso doutrinário no que toca à identidade conceitual, ou não, entre caso fortuito e de força maior, lê-se do caput do artigo 393 do Código Civil que “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado” e do seu parágrafo único que “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Isso, aplicado ao contrato administrativo, caracteriza álea extraordinária, a qual, por sua vez, justifica a aplicação da teoria da imprevisão para o reequilibrar.
A pandemia da COVID-19 é essencialmente fato necessário extraordinário, imprevisível, de arrefecimento incerto. Dessa forma, empresa que seja parte contratada de um contrato firmado com a Administração e que tenha sido prejudicada, na execução de seus serviços ou na entrega de seu produto, pelos impactos sanitários e socioeconômicos exsurgidos daquela, tem, nos termos da lei, direito subjetivo à purgação da álea econômica do caso, devendo a Administração revisar o contrato, e, consequentemente, restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro.
Aplicabilidade bastante evidente dá-se no caso em que o contrato administrativo teve de ser suspenso em razão da pandemia, e não por culpa da contratada ou por decisão fundamentada da Administração. Nessa situação, deverá esta, sempre que possível, promover a revisão contratual, para dirimir a álea econômica, e, consequentemente, restabelecer o equilíbrio entre os direitos e deveres das partes – como bem asserta a Advocacia-Geral da União (AGU) no Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU[9], cuja conclusão é a de que “A pandemia do novo coronavírus configura força maior ou caso fortuito, caracterizando álea extraordinária para fins de aplicação da teoria da imprevisão a justificar o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes […]”[10].
A bem da verdade, a responsabilidade da Administração, como contratante, não resta encerrada no direito da parte contratada de ter o contrato revisado, com vistas a dirimir os riscos extraordinários do contrato. O restabelecimento do equilíbrio do contrato não pressupõe somente o abalizamento equânime das cláusulas, mas, também, como consectário deontológico, o dever da Administração de indenizar a contratada pelos prejuízos decorrentes da pandemia – quer tenha de haver a resolução contratual, quer não.
Vê-se, logo, que a pandemia decorrente do COVID-19 veio fortuita e inevitavelmente, dando início à crise sanitária, econômica e social que ainda assola o povo brasileiro. No plano jurídico dos contratos administrativos, do mesmo modo, os contraentes viram-se em crise, impotentes em face da Administração e muita vez impossibilitados de prestarem os serviços ou entregarem os produtos avençados, devido ao extraordinário e inevitável estado de coisas atual.
Desse modo, ao menos no que tange aos contratos administrativos de contratação pública, conclui-se sem hesitação: o reequilíbrio econômico-financeiro, tão caro que é ao contrato administrativo, é pleito justificado, à Administração, diante da cesárea aleatoriedade ínsita à crise nascida da pandemia do COVID-19.
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Texto originalmente publicado em: https://schiefler.adv.br/contratos-administrativos-reequilibrio-economico-financeiroecovid-19/
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[1] Estagiário de Direito no Escritório Schiefler Advocacia. Bacharelando em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).
[2] GOMES, Orlando. Contratos. ed. 18, Rio de Janeiro: Forense, 1999. pp. 74-75.
[3] Ibidem.
[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. ed. 10, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 468.
[5] É certo, porém, que a comutatividade do contrato administrativo não implica a inexistência de álea, de riscos. O que a lei não admite é que os riscos suportados pelos contratantes extrapolem os riscos normais da contratação, inerentes à natureza do negócio. Logo, não se há de falar, por exemplo, em reequilíbrio de contrato de compra e venda de mercadoria importada em que haja certa variação cambial entre o oferecimento da proposta e a efetiva aquisição pelo importador; nem de risco normal de contrato prestação de serviços de vigilância os quais, num determinado mês, ocorram mais que noutro; nem de contratação de obra na qual determinada aplicação de material precise ser refeita em razão de alguma reação química incomum dos insumos.
[6] Em tradução livre, “os pactos devem ser observados”.
[7] Trata-se da cláusula rebus sic stantibus, haurida do Direito Romano.
[8] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 31, rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
[9] Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU. Disponível em: >. Acesso em: 11 jun. 2020.
[10] No caso, tratava-se de contrato administrativo de concessão, mas é de se ressaltar que a caracterização do evento, e consequente direito ao reequilíbrio econômico-financeiro, serve, a fortiori ratione, ao gênero contrato administrativo.
Fonte: https://schiefleradvocacia.jusbrasil.com.br/noticias/863676069/contratos-administrativos-reequilibrio-economico-financeiro-e-covid-19?ref=feed